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Artigo: A Ética de Caim

Fevereiro 07, 2014
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A Ética de Caim

“Sou eu responsável por meu irmão?” (Gn. 4.9)

Bauman , citando Levinas, afirma que dessa pergunta irada de Caim nasceu a imoralidade. A despeito das discussões teológicas que essa afirmação suscita, os autores citados tem razão ao perceber que atrás do questionamento de Caim reside uma lógica, uma ética que ignora e contradiz a ordem natural criada por Deus. Em outras palavras, somos responsáveis por nosso irmão sim, e a simples necessidade de uma razão explícita para que eu aceite e responda a essa responsabilidade é sintoma de que a ética está desvirtuada. Caim era tanto responsável por Abel, como Abel era responsável por Caim. Omitir-se ou fazer algo que contrarie essa responsabilidade é, sem dúvida, imoralidade.

Essa afirmação nos leva a aplicar tal princípio à dimensão da Ação Social contemporânea. Em geral a ação social é vista, mesmo pela igreja que conhece essa teologia, como uma via de mão única, uma ação unilateral. A ação social é vista quase sempre como um ato de doadores em favor de pessoas carentes. Voluntários que atendem beneficiários. Contudo, o pensamento anterior nos direciona para outra ótica, a lógica da mútua dependência. Somos ambos e todos, responsáveis por nosso semelhante. A ação Social não é a ação do compadecido para com o carente, mas a relação entre pessoas que reconhecem a interdependência entre si. Pode parecer complexa, mas essa mudança é essencial para que a Ação Social se torne permanente e sustentável, mais eficiente em seus objetivos e menos assistencialista em seus resultados.

O que se quer dizer é que a ação social supera a sua lógica de carência-compaixão, e assume a lógica da interdependência-responsabilidade. Faz com que os agentes e facilitadores dessas ações percebam a necessidade de motivar, com os motivos corretos, ambos os grupos. Ou seja, estimular aqueles que ainda chamamos de beneficiados e voluntários, a que se relacionem em prol de um objetivo comum. A vantagem dessa abordagem é que ambos se tornam responsáveis pelo enfrentamento do problema, o alvo não é resolver o problema de outra pessoa, mas resolver um problema comum com essa pessoa. Na prática e como exemplo, não é resolver o problema do morador de rua, pois o fato dele habitar na rua que eu utilizo é um problema tanto meu quanto dele. Significa que os problemas que resultam na situação social indesejável são comungados por nós, e resolvê-los é uma responsabilidade dele e minha. E só será atendida por ambos.

Ou tentando ser, mais prático ainda. Entendo que a ação social é o resultado do encontro da necessidade, da vontade e da capacidade. E que os três aspectos citados aqui pertencem a aqueles que entendemos como “beneficiados” como aqueles que entendemos como “voluntários”. Dessa forma a ação social deixa de ser um ato, para ser uma relação, deixa de ser imposta para ser negociada, deixa de ser unilateral para ser bilateral na busca de soluções de problemas comuns, de pessoas interdependentes, como uma sociedade sempre é e será, quer compreendamos e aceitemos ou não. Nas próximas publicações tratarei desses três aspectos mencionados acima e que devem, a meu ver, sustentar o planejamento da Ação Social. Por hora concluo essa proposta de mudança de concepção relembrando que o princípio da mutualidade não é novo e nem ausente da Escritura. Por exemplo, Paulo já o havia exposto em uma de suas cartas elogiando a igreja de Filipos por saber se relacionar dentro do princípio da mútua dependência, em suas palavras “dar e receber” (Fp 4.15).  

Despeço-me no desejo que a ética de Caim não nos faça seus reféns.

 

Rev. Joer Corrêa 

Gerente de Responsabilidade Social do Instituto Presbiteriano Mackenzie

 

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